sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

VOA, BEIJA-FLOR, PRA QUEM NÃO TE CONHECE
(título carinhosamente emprestado da dupla Jorge e Mateus)

dedicado à boemia


Ela surge no bar com um amargo encenado na boca. Que escolham bem quem beijar, ela diz para quem está na fila do banheiro, e prepara-se para escovar os dentes na pia em que os banheiros reúnem suas bactérias. Ela faz caretas de quem está com um gosto ruim na boca. Claro está: há algo errado naquela cavidade bucal. A coroa de flores que traz na cabeça indica que se trata de um figurino. Mas o belo é a verdade. Antes o figurino que um corpo nu, penso, decadente, de sentidos embotados, apaixonado pelo cheiro de cigarro das meninas elegantes que fumam fora do bar, ao ar livre. A mentira que ora entra no bar interrompe a sonolência costumeira e a desgutação da empada de palmito que esfarefalava em minha boca. Está bêbada. Antecipo-lhe a boca mole com gosto de cerveja. A escovada veio a calhar. Magrela, os lábios de jabuticaba são pouco mais da metade do rosto. Umedeço os meus. Você dividiria a escova comigo? Claro, ela responde, quer pasta também? Parem. Degustem. Passem a língua pelo inteiror das suas bocas. Trata-se de momento inaugural. É a ultra-intimidade à primeira vista: escovo os dentes, reencenando. Escolham bem quem vocês beijam, digo às pessoas da fila. Quando devolvo a escova: Quimera, a verdade é que temos um match no Tinder. Rapidamente ela conclui que devemos nos beijar e... beijamos. Mas é preciso partir, ela diz sem dizer, logo partindo. O que vem fácil vai fácil, é o costume com que me defendo. Permaneço no bar, os bocejos sumiram, estou oxigenado e sorridente. Imagino o nosso futuro. Agora que já somos íntimos assim, quem sabe possamos recuar um pouco e morar juntos, ter relações sexuais diárias, conhecer um pouco mais um do outro e finalmente sermos apresentados um ao outro... Estou apaixonado, penso. Não seja ridículo, penso. Estou apaixonado, retruco defintivamente. Você é um imbecil, as dúvidas somem. De onde surgiu tal moça? Não me faço essa pergunta, porque ela já foi respondida e o esforço é justamente por não entender que ela veio de outro beijo, meu caro. Ela é o beija-flor do Tinder. Ainda não sei disso. O coração, vocês sabem, preciso dizer? O coração, ah, vocês sabem, está acelerado. Fico ali degustando a boca escovada e beijada rodeado de outras bocas e vozes encervejadas. Quimera Magrela, linda, sumindo na multidão a que o social insiste em dar forma. Quem é quem, que eu vou beijar agora. Por onde andará a encarnação do que sempre esperei? Ela. Fujo das demais bocas e conversas de rir e divertir. Procuro e encontro. Ela me dá novo beijo e dá tchau. Nos encontramos ao acaso dois dias depois, numa rua progressista da cidade. Preparo meus lábios. Ela me explica que está de boca em boca com base em critério quantitativo, numa espécie de carpe diem mal lido e adaptado para tempos pós-modernos. No novo encontro quero saber mais do que anda a fazer esse beija-flor, mas ela pouco para por perto. Diz que a minha cavidade bucal não conta porque já foi. Precisa de cavidades inéditas, novas, atualizadas, além-tédio. Imediatamente, quero ser o adendo na cláusula dela com eles, dela com ela mesma. Ela entende. Você quer um beijo? Beijamos. Vocês sabem, o peito, eu já disse, e se repete: os batimentos. Vocês sabem, ela me deixa... No meio da rua... E com cara de pegadinha... O beija-flor voa logo para outra cavidade. Tento não olhar, num misto de desapego que pega bem e medo de sofrer. Refugio-me no conhecido mais próximo, com saudades, desorientado de peito abalado. Se você quer ter um pássaro (como é?), deixe que voe, se ele voltar... Beija-flor ligado na tomada me faz viver três anos de namoro num só beijo menos beijo que contato de cavidades bucais. Voa, beija-flor, que eu continuo aqui, com o meu mel à disposição. Vai de boca em boca, em paz, e volta para o que você merece: eu, que não te conheço, com o meu amor sabor empada de palmito. Mais íntimo que escovar os dentes com a mesma escova é beijar com comida na boca. Já temos para um novo passo para dar, beija-flor. Não há enjôo que nos ponha fim. A surpresa infinita da ultra-intimidade à primeira vista persitirá. 

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Um cara aí de 72 anos sentia dores no braço que fora amputado há 48. 
Começaram a fazer ele jogar uns jogos de computador em que tinha o braço de volta para dirigir carros e fazer sei lá o que mais.
As dores diminuíram.
Será por que agora aquele braço fantasma pode, ainda que na realidade virtual, fazer coisas?

A próxima hipótese a levantar é...
Vocês sabem...

reportagem: http://www.publico.pt/ciencia/noticia/realidade-virtual-ajuda-a-diminuir-a-dor-de-homem-que-ficou-sem-antebraco-1626289

artigo completo:http://journal.frontiersin.org/Journal/10.3389/fnins.2014.00024/full

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Mais uma conta no Facebook

Se você quer ter uma conta no Facebook, por quê você não quer ter um Facebook?
Vai, escreve, desfia o teu rosário de baboseiras sem fundamento
É claro que você tem pensado filosofias que nenhum Kant escreveu
Então agora escreva-as todas sofrendo a consciência delas
Resista, não delete
Ninguém vai te descobrir
Ninguém vai te achar e pedir as notas fiscais todas
Nem vão querer ver a tua biblioteca pessoal ou rastrear os sítios que acessou.
Não, ninguém está disposto a encontrar a genialidade que você esconde:
Ela está lá
Vai ficar lá
Vai ficar registrada lá nessa conta que promete uma grande obra vindoura
Vai ficar registrada lá
Anônima como a criança que te masturba todas as semanas
Resista e não oculte um só verso
Publique todos
Evidencie todos os backspaces teclados
Todos os tatus tirados
Todas as ideias infrutíferas
Diga não aos revisores
Diga sim às ideias tolas
Deixe-as contaminar as boas até que não as distinguamos
Sem faro que todos estamos
Sem faro que todos continuaremos
Vamos
Em frente
Pra trás
Pra qualquer lado feito um gato cujos bigodes um miúdo cortou
Siga nisso com medo de terminar, avaliar, ponderar, mas já ponderando errando o tempo

Como uma febre que dura e desnatura o que não precisava.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Parábola do tempo em que não havia Feicebuque, minha infância no Parolin
(fosse hoje e isso era um vídeo no Iú-Tube)

Na frente da minha casa tinha uma valeta a céu aberto. O ar, principalmente em dias de verão, tinha o cheiro daquilo que a vizinhança havia ingerido, digerido e misturado ao ritmo dos seus intestinos.
Do outro lado da valeta, tinha um grande terreno baldio, meu vizinho da frente  era um grande matagal cheio de mamonas.  Eu e meus amigos tínhamos contruído uma ponte para atravessar a valeta e, no terreno baldio, tínhamos construído uma cabana toda mobiliada com o lixo que encontrávamos pela rua. As mamonas faziam o teto.
Certo dia ensolarado, jogamos um de nós mesmos naquele rio fecal. A graça foi tanta que acabamos nos jogando todos no esgoto a céu aberto, tomando, claro, o cuidado de encenar a coisa de tal forma a parecer que não consguíamos escapar da queda que nos infligíamos uns aos outros.  Enquanto ríamos, já lá dentro, arremesávamos os dejetos disponíveis uns nos outros. Se alguém ensaiava uma saída (e era sempre um blefe), logo puxávamos o fugitivo para dentro da valeta, que nos engolia mole pelo menos até a cintura.

Acabada da graça, saímos todos esmerdeados pela rua e tomamos então um banho de mangueira no jardim, orgulhosos de nosso feito.  Compúnhamos bem com aquele dia de verão.